Caminho errado, enxaqueca, sinusite, derrota do Sport e acidente. Deu tudo errado em Salvador

Márcio Didier

O que não é o futebol se não a mais perfeita união da matemática, química, física e biologia? É a soma de milhares de torcedores apaixonados, seguindo à distância a velocidade da bola indo e voltando no campo, até a liberação total da adrenalina com o gol. Torcer é amar, se entregar e, por vezes, às vezes muitas vezes, sofrer.

Era por volta das 4h de uma quarta-feira de outubro de 2001. Na parada de ônibus da Praça do Carmo, em Olinda, Zé Neves foi pontual. “Bora simbora, Sapo-Boi”, disparou, com a delicadeza que lhe era peculiar, de dentro da sua Paraty verde, enquanto ouvia Kukukaia, do CD Cantoria.

José Neves Cabral (o jornalista e não o ex-vereador) era editor-assistente de Esportes do JC. Com diversos quilos acima do aceitável, distribuídos em pouco mais de 1,70 metro, principalmente no abdômen, ele é um cara arretado, um dos melçhores que conheço, e tem um coração gigante, inversamente proporcional ao seu estilo bruto.

Não é dado a fricotes. Tinha um pastor alemão branco lindo, Mickey, muito brabo e de grande porte. Certa vez foi passar com o cachorro, sem coleira como de costume, pelas ruas de Piedade, onde morava. Em dado momento, Mickey empacou. Zé chamou uma, duas, três vezes por Mickey, que não atendeu. “Ah, é? Então se vire para voltar”. E foi embora. Quase uma hora depois tava Mickey chorando no portão de casa.

Zé era o piloto daquela viagem, cujo destino final seria a cidade de Salvador, para assistir ao jogo Vitória X Sport, no Barradão, que começaria horas depois, às 21h30. Dizia conhecer bem o caminho, pois já tinha feito a viagem uma outra vez.

Depois de um café da manhã reforçado em Novo Lino (AL), com direito a ovos, carne, cuscuz, inhame, macaxeira, bolo, queijo assado, pão torrado, café com leite e suco, tudo isso por R$ 7,87, pegamos a estrada. E aí as coisas começaram os problemas. E não foram poucos.

Mapa man

Com o mapa na cabeça, Zé engrossou a voz quando sugeri perguntar qual o caminho correto. “Eu sei!”, disse, seco. E foi. Pouco mais de uma hora depois, quando já deveria estar saindo de Alagoas, decidiu parar num posto policial para perguntar.

“Amigo, você tem duas alternativas. Ou segue por essa estrada até Paulo Afonso. De lá segue para Salvador. Ou volta os 75 quilômetros que andou até aqui e, em Arapiraca, volta para o caminho mais curto”, disse o policial rodoviário, com um riso maroto de canto de boca. Decidimos voltar os 75 quilômetros e aumentamos duas horas e meia de viagem.

O erro de rota não tirou a animação. O que já não dava mais para aguentar era o CD Cantoria. Por mais que a pessoa gostasse de Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai, após mais de sete horas de viagem, ninguém aguenta ouvir por sete, oito vezes as 13 músicas do disco.

“Tenho um outro massa aqui, Sapo-Boi”, disse Zé. E meteu uma coletânea dos melhores cantos de sabiá. Ele só tinha esses dois CDs no carro. Foi a nossa trilha.

Horas depois, quando o Rio São Francisco já se alinhava com o horizonte, e o almoço se aproximava, um buraco na pista empenou duas jantes da Paraty de Zé. Sempre que há esses problemas técnicos na estrada, pode estar certo que tem um borracheiro em seguida. E tinha. Mais uma hora e 15 de atraso.

Nova parada

Mas ele é um bom motorista e, após um almoço em Propriá, às margens do São Francisco, empurrou o pé. Chegamos até num horário folgado em Salvador para assistir ao jogo. Não fosse pelo fato de Zé ir a uma loja de pneus para avaliar os danos que o buraco provocou. Não fizeram nada a mais do que o borracheiro de Propriá tinha feito. Mas perdemos uma hora e meia.

Tudo ficou muito corrido para chegar ao Barradão. Parecia até que tudo estava dando errado e que o Sport iria perder… E perdeu. Por 1 X 0.

A partir daí, começou uma sequência inacreditável de acontecimentos, que até dá para desconfiar do oculto. Nunca acreditei em praga de mulher, mas…

  • Na quinta, era dia de praia. “Vamos passar na autorizada só para olhar um barulhinho no painel”, disse Zé. Terminou às 13h e tchau praia!

  • Almoçamos uma moqueca de polvo no Sorriso da Dadá. Zé Neves adorou. Eu queria provar um pouco mais do que a pequena porção que coloquei. Mas ele foi mais rápido.

  • Ao fim do almoço, por volta das 16h, Zé teve uma enxaqueca forte, que inviabilizou qualquer chance de sairmos para tomar uma. Acabei lendo os jornais num quiosque na orla de Ondina.

  • Na sexta, um bucólico passeio na Ilha de Paquetá. Não sei o que perdemos lá. Mas não tinha nada além de uma praia sem qualquer bar. Nem descemos do carro.

  • Voltamos e fomos ao Pelourinho. Após um novo almoço provando as delícias baianas, caminhávamos pelas ruas históricas quando um senhorzinho, numa barraquinha daquelas que vende de tudo, me chamou e disse que tinha um “pozinho que limpava as pessoas completamente por dentro”. Era tipo rapé. Experimentei, dei uns três espirros e achei arretado. Paguei R$ 10 (em dinheiro de hoje, uns R$ 50) num potinho de pouco mais de um centímetro. E continuei cheirando e espirrando, cheirando e espirrando. Lá pelo 25 espirros, bateu uma sinusite que nunca tinha experimentado, naquela tarde quente de outubro em Salvador. Tchau sexta-feira.

Volta antecipada

Decidimos não prolongar mais a viagem. Iríamos voltar no domingo, mas antecipamos para o sábado, diante de tantos atropelos.

E pegamos a estrada, numa manhã linda de sol forte. Tudo tranquilo, ao som dos cantos de sabiá. Não tínhamos tipo tempo para comprar outros CDs.

Até que, perto de Palmares, uma placa de metal de 40cmx40cm caiu de um caminhão e veio em velocidade em direção ao carro.

Por sorte, chocou-se primeiro contra o capô do carro, reduzindo a velocidade antes de bater no vidro. Isso evitou uma tragédia grande, pois atingiria um dos dois em cheio. Paramos num posto da Polícia Rodoviária para nos recompor do susto. E retornamos. Depois, Zé teve que parar o carro na oficina por vários dias para consertar toda a frente destruída do carro.

Nunca mais viajamos juntos. Depois dos perrengues, ficaram as boas lembranças. E a certeza que o Sport caiu para Série B em 2001 por causa daquele jogo. Por via das dúvidas, também nunca mais assistimos a um jogo do Leão da Praça da Bandeira juntos de novo.

**Aos sábados, sempre uma crônica

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SOBRE O EDITOR
Márcio Didier

Márcio Didier é jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco, com passagens pelo Jornal do Comércio, Blog da Folha e assessoria de comunicação

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