Um entrevistado indócil e o desafio da pergunta certa

Márcio Didier

A manhã nasceu feliz, naquela sexta-feira de 1997. Sob a luz do sol, uma Boa Viagem ardente, vibrante. Muitos corpos em poucos tecidos disputavam espaço na areia e no calçadão, iniciando com um dia de antecedência o fim de semana. Afinal, aquele dia era perfeito para uma praia.

Do outro lado da Avenida Boa Viagem, a recepção do Hotel Recife Palace estava confusa, naquela manhã. Um entra e sai frenético de hóspedes e participantes de um congresso médico, que também aproveitavam a praia entre uma palestra e outra.

Passava das 10h, quando uma grande comitiva chegou ao hotel. Era liderada pelo ex-primeiro-ministro e ex-presidente português Mário Soares. Ele tinha vindo ao Recife para participar de um evento na Universidade Federal de Pernambuco, além de também se encontrar com o governador Miguel Arraes, socialista como ele.

No hall do hotel, o editor-assistente da Editoria de Internacional do Jornal do Commercio se apresenta e diz: “Presidente, temos uma entrevista marcada”. A seu lado, o cônsul de Portugal no Recife Jorge Manuel Fernandes balançou a cabeça afirmativamente, confirmando a agenda. Sem olhar para o lado, e com a cara de quem não tinha gostado da novidade, talvez porque quisesse aproveitar um pouco do sol, o líder português respondeu, secamente: “Tens 15 minutos. Me acompanhe”.

Considerado o “pai da democracia” portuguesa, por seu papel na Revolução dos Cravos de 1974, que completa 50 anos no próximo dia 25 e que pôs fim a 48 anos de ditadura militar no País, Mário Soares tinha deixado a presidência de Portugal em 1996. Antes, tinha sido por duas vezes primeiro-ministro português (1976-1978 e 1983-1985).

Ele e o ex-presidente da França François Mitterrand eram os grandes expoentes do socialismo no Europa, num momento em que começava a ganhar mais corpo o movimento de extrema-direita francesa, liderado por Jean Marie Le Pen. O ex-líder francês, no entanto, havia falecido em 8 janeiro de 1996, dois meses antes de Mário Soares deixar o poder. E o jogo político europeu era uma, e talvez a principal, das pautas.

Antes da primeira pergunta, o suor

Na ampla cobertura do Recife Palace, decorada em tons escuros típico dos anos 1980, com o marrom predominando, Mário Soares sentou-se na poltrona da sala de estar. Gravador ligado, o jornalista, que tinha levado cinco assuntos para o bate-papo, começou a suar. Uma pergunta errada e 15 minutos depois o encontro acabava.

Uma entrevista nada mais é do que um jogo de xadrez verbal. Não há espaço para jogadas erradas.

O ex-presidente português estava numa cruzada por vários países para defender a unificação da língua portuguesa. Esse é o caminho, pensou o repórter. “O senhor tem sido talvez o principal incentivador da unificação da língua portuguesa. O que tanto te encanta em nossa língua?”. Os olhos de Mário Soares brilharam. A jogada tinha sido correta. Poucas vezes uma pessoa falou com tanta paixão sobre a língua portuguesa.

Durante os anos que presidiu Portugal, Mário Soares também foi um árduo defensor da autodeterminação do Timor Leste, país do sudeste asiático, que teve o seu território ocupado pela Indonésia em 7 de dezembro de 1975. “Outro assunto que gostaria de conversar com o senhor. O que falta para a autodeterminação do Timor Leste?”

O corpo fala

Ele, que já havia acomodado o paletó na cadeira momentos antes, afrouxou a gravata, tirou os sapatos e colocou os pés ainda com as meias na mesa de centro. Estava à vontade. O corpo fala e dizia que a jogada havia sido correta de novo.

A partir daí a entrevista fluiu. Todos os temas foram tratados. Até o que não estava na pauta, como o futebol.

Após 2h15, o encontro chegou ao fim.

Desliguei o gravador e agradeci: “Presidente, muito obrigado pelos 15 minutos de entrevista e pelas duas horas de conversa”.

Mário Soares deu um sorriso largo, franco, virou-se para o cônsul Jorge Manuel Fernandes e disse: “Só traga jornalistas como Márcio para entrevistar-me”.  

Saí do encontro mais radiante do que o sol a pino das 13h. Não há reconhecimento maior para um jornalista do que acabara de receber.

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SOBRE O EDITOR
Márcio Didier

Márcio Didier é jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco, com passagens pelo Jornal do Comércio, Blog da Folha e assessoria de comunicação

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