Dona Lucrécia, carnavais, amor e saudade

Márcio Didier

As madrugadas de domingo de Carnaval, nos anos de 1970, eram sempre de expectativa e ansiedade para aqueles três meninos e seis meninas que se imprensavam no quarto do meio da casa térreo da Avenida Sigismundo Gonçalves, 599, em Olinda. Era a noite em que a mística do Carnaval passava diante dos olhos deles.

Por volta das 3h, dona Lucrécia, com seus passos lentos e ritmados, cabelos brancos e ralos, anunciava: “Lá vem o Homem da Meia-Noite” (sim, como o hino do bloco). As nove crianças corriam para o palanque de madeira, erguido rente ao muro da frente de casa.

Aquela figura gigante aos olhos de um menino de 5, 7 anos era pura elegância e magnetismo. Diante da plateia mirim, o calunga mais querido do Carnaval curvava o tronco para cumprimentá-los. E saia, repetindo o ritual nas casas seguintes.

Ainda eufóricos, meninos e meninas se recolhiam mais uma vez ao quarto do meio. Até por volta das 6h, quando dona Lucrécia, mais uma vez, os convocava para ver a passagem do temido Cariri Olindense, “com o saco de pegar criança” e tudo.

A camisola daquela senhora que acabara de acordar a todos era uma espécie de escudo contra uma eventual investida do Cariri. Todos se agarravam a ela e aquilo dava uma indescritível sensação de proteção.

Longe da folia

Fora do Carnaval, dona Lucrécia gostava de jogar canastra. De vez em quando escorregava na esperteza, ao ir para o banheiro e deixar cair no chão as cartas que retirava irregularmente do “morto”. Ela detestava perder no jogo. Também gostava de fiscalizar diariamente a vida alheia, na frente de casa.

Mãe de filho único e com cinco netos, tinha um chamego pelo mais novo deles. Por vezes, em sigilo para não melindrar os outros netos, pegava em sua mão e deixava algumas notas enroladas do dinheiro em vigor no momento econômico do País.

Mas ser o neto querido tinha seu preço, também. A cada nova namorada que fosse apresentada, ela gostava de sentar para conversar. O assunto era sempre absolutamente o mesmo: a ex-namorada perfeita do neto. Sempre a melhor mulher do mundo, posto conquistado a partir do momento que se tornava ex do neto.

Uma delas talvez tenha tido grande autocontrole para sobreviver às histórias da ex, suportando as provocações em série. Foi em frente e casou com o neto predileto, em 1995. Infelizmente dona Lucrécia não teve tempo para poder acompanhar a cerimônia. Meses antes, um câncer agressivo a levou.

Neste domingo (11), eu e Iraneide completamos 29 anos de casados. Se estivesse viva, minha vó, dona Lucrécia, completaria, nesta segunda-feira (12), 113 anos.

Este será um Carnaval de celebrações, muitas lembranças boas e uma saudade que não cessa.

* Aos sábados, sempre uma crônica

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SOBRE O EDITOR
Márcio Didier

Márcio Didier é jornalista, formado pela Universidade Católica de Pernambuco, com passagens pelo Jornal do Comércio, Blog da Folha e assessoria de comunicação

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