Deputados católicos e evangélicos articulam a criação de uma bancada cristã com direito a assento e voto no colégio de líderes da Câmara dos Deputados. A proposta, endossada pelos presidentes das frentes parlamentares Católica e Evangélica e recebida com entusiasmo pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), reacende um debate que nunca deveria ser necessário em um Estado laico: por que representantes religiosos buscam institucionalizar sua fé dentro de uma instância política?
O colégio de líderes é o espaço mais estratégico da Câmara, onde se define a pauta de votações. Dar assento e direito a voto a uma bancada de inspiração religiosa é misturar crença e poder, dois campos que a Constituição brasileira separa com clareza desde 1988. Num país plural, com diversas expressões de fé – e também com quem não professe nenhuma –, não cabe a nenhuma religião ocupar um lugar institucional dentro do Legislativo.
Bancada é representação ou privilégio?
Defensores da proposta alegam que já existem bancadas com status semelhante, como as femininas e negras. Mas a comparação não se sustenta. Essas frentes buscam garantir igualdade de representação a grupos historicamente excluídos, enquanto o cristianismo é a religião dominante no país e já possui presença majoritária entre os parlamentares. Criar uma bancada cristã não amplia representatividade, formaliza um privilégio.
Além disso, o projeto tramita em regime de urgência, o que reforça a desconfiança sobre sua real motivação. Movimentos dessa natureza costumam surgir quando o calendário eleitoral se aproxima, revelando o uso político da fé e a tentativa de transformar crença e a boa fé da população em voto.
Fé é individual, o Estado é coletivo
A liberdade religiosa é um valor fundamental, mas ela não se confunde com representação institucional de crenças. O papel do Estado é garantir que todos possam crer – ou, até, não crer – sem que nenhuma fé se sobreponha às demais. Quando o Parlamento se organiza por afinidades religiosas, ele abandona a função pública para servir a convicções particulares.
Em um Estado verdadeiramente laico, não há espaço para bancadas religiosas, sejam cristãs, judaicas, islâmicas, de matriz africana ou de qualquer outra fé. O espaço da política deve permanecer livre da religião, assim como a religião deve estar livre da manipulação política. Misturar os dois é abrir mão da razão pública em nome da conveniência eleitoral.
Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados
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